terça-feira, 2 de março de 2010

Postador por Ingride Gisele as 09:30

Les règles de la méthode sociologique (1895) constitui a primeira obra exclusivamente metodológica escrita por um sociólogo e voltada para a investigação e explicação sociológica. importante ressaltar sua própria posição cronológica: publicada depois de Division du travail social (tese de doutoramento em 1893), seus princípios metodológicos são inferidos dessa investigação (ainda que não fosse trabalho de campo); tais princípios por sua vez são postos à prova e aplicados numa monografia exemplar que é Le suicide (1897), em que a manipulação de variáveis e dados empíricos é feita pela primeira vez num trabalho sociológico sistemático e devidamente delimitado.

Simultaneamente com a elaboração dessa monografia em que utiliza o método estatístico, Durkheim organiza uma outra de menor porte em 1896 (“La prohibition de l'inceste et sés origines.” DURKHEIM, 1969: p. 37-101), e onde o método de análise de dados etnográficos é aplicado numa perspectiva sociológica. Esta linha. de investigação tem prosseguimento na sua não menos importante monografia publicada em 1901-02 “De quelques formes primitives de classification” (id., ibid. p. 395-460), elaborada de parceria com Mauss. Estas duas monografias antecipam a última fase metodológica de Durkheim, que culmina com a publicação relativamente tardia de Les formes élémentaires de la vie religieuse (1912).

Essa fase é de grande originalidade do ponto de vista metodológico, na medida em que a manipulação de dados etnográficos permite a análise de representações coletivas, que são encaradas, num sentido estrito, como representações mentais ou, melhor dito, representações simbólicas que, por sua vez, são imagens da realidade empírica. Em outros termos, Durkheim empreende os primeiros delineamentos da sociologia do conhecimento. Sua originalidade consiste em que, através da análise das religiões primitivas – o totemismo como sua forma primeira e mais simples –, pode-se perceber como os homens encaram a realidade e constroem uma certa concepção do mundo e, mais ainda, como eles próprios se organizam hierarquicamente, informados por tal concepção. Como se viu, a sucessiva introdução de elementos enriquecedores da análise adquire um significado metodológico especial, pois constitui – ao lado de conhecimentos positivos que proporciona clara demonstração do processo de indução científica.

Em “De quelques formes primitives de classification”, Durkheim e Mauss escrevem:

“Todos os membros da tribo se encontram assim classificados em quadros definidos e que se encaixam uns nos outros. Ora, a classificação das coisas reproduz essa classificação dos homens” (DURKHEIM, 1969: p. 402. Grifos do original).

Essa é, em última análise, a tese de Les formes élémentaires e que, naquele mesmo texto, é igualmente enunciada como segue:

“Em resumo, se não estamos bem certos de dizer que essa maneira de classificar as coisas está necessariamente implicada no totemismo, e, em todo caso, certo que ela se encontra muito freqüentemente nas sociedades que são organizadas sobre uma base totêmica. Existe pois uma ligação estreita, e não apenas uma relação acidental, entre esse sistema social e esse sistema lógico” (id. ibid. p. 425. Grifos nossos).

A questão epistemológica que se levanta é da maior relevância científica e do maior interesse sociológico. Em síntese, não e apenas através das verbalizações que o homem procura representar a realidade: ele o faz até mesmo pela maneira como se dispõe territorialmente, face a essa realidade. E suas formas organizacionais da vida social, além de mediações empíricas, são portadoras de uma ideologia implícita, que forma um arcabouço interno quase disfarçado se não fora a agudeza de penetração do espírito científico do investigador sustentador virtual do sistema social. É necessário um método apurado, tal como desenvolveu Durkheim, para que se possa ver, descrever e, o que e mais importante do ponto de vista científico, classificar a(s) realidade(s). Essa nos parece uma das mais notáveis contribuições científicas da Sociologia, cujos méritos devem ser prioritariamente creditados a Durkheim.

Na “Introdução” de Les règles Durkheim chama a atenção para o fato de que os sociólogos se mostram pouco preocupados em caracterizar e definir o método que aplicam: está ausente na obra de Spencer; a lógica de Stuart Mill se preocupou sobretudo em passar sob o crivo da dialética as afirmativas de Comte; enquanto este lhe dedica um só capítulo de seu Cours de philosophie positive (v. VI, 58a lição) “o único estudo original e importante que temos sobre o assunto” (DURKHEIM, 1895: p. 1).

Se nesse capítulo Comte se mostra largamente influenciado por Bacon e parcialmente por Descartes, pode-se perceber como este também influenciou Durkheim. Mas talvez se deva a Montesquieu a maior dose de influência sobre o autor das Règles. Embora este não se mostre preocupado simplesmente em estabelecer leis explicativas dos fenômenos sociais, acha-se implícita a idéia das “relações necessárias” que se estabelecem no âmbito dos fenômenos da sociedade. Já na sua tese complementar sobre Montesquieu ele evidenciara sua preocupação com duas instâncias encadeadas de descrever e interpretar a realidade social.9

Com respeito a Descartes, a vinculação e menos evidente, mas não se pode deixar de assinalar certa semelhança na formulação de Les règles de la méthode sociologique com as Règles pour la direction de l‘esprit, uma espécie de manual inacabado de metafísica e publicado post-mortem.10 A primeira regra cartesiana poderia servir perfeitamente como epígrafe das Règles de Durkheim:

“Os estudos devem ter por finalidade dar ao espírito [ingenium no original latino] uma direção que lhe permita conduzir a julgamentos sólidos e verdadeiros sobre tudo que se lhe apresente” (DESCARTES, Règles. 1970: p. 1) .

Apesar de Descartes utilizar a aritmética e a geometria nas suas exemplificações e demonstrações, fica claro que suas regras não se limitam às matemáticas ali tomadas como protótipo das ciências. O tratamento dos fenômenos como coisa e uma constante nesse trabalho de Descartes, tal como no de Durkheim. Assim, a Regra XV (de Descartes) recomenda que, ao se tomar a figura de um corpo, deve-se traçá-la e apresentá-la ordinariamente aos sentidos externos.

Na Regra V, Descartes define o método:

“Todo método consiste na ordem e arranjo dos objetos sobre os quais se deve conduzir a penetração da inteligência para descobrir qualquer verdade” (id., ibid. p. 29).

E na Regra VI faz uma recomendação que é largamente desenvolvida em Logique de Port-Royal: distinguir as coisas mais simples daquelas mais complexas e que, como todas as coisas podem ser distribuídas em séries, e preciso discernir nestas o que e mais simples. Na Regra XII essa colocação é retomada, para mostrar todos os recursos necessários para se ter uma intuição distinta das proposições simples, seja para fins classificatórios, seja para fins comparativos. Tais colocações não deixam de estar presentes na recomendação básica de Durkheim, no que se refere à constituição dos tipos sociais (cap. IV):

“Começa-se por classificar as sociedades segundo o grau de composição que estas apresentam, tomando por base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único; no interior dessas classes se distinguirão as diferentes variedades, conforme se produza ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais”

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