terça-feira, 2 de março de 2010

Postador por Ingride Gisele as 09:28

Les Règles constituem um esforço sistemático com vistas à elaboração de uma “teoria da investigação sociológica” (FERNANDES, 1959: p. 78), voltada para a busca de regularidades que são próprias do “reino social” e que permitem explicar os fenômenos que ocorrem nesse meio sem precisar tomar explicações emprestadas de outros reinos. A posição metodológica de Durkheim é, por conseguinte, estritamente sociológica, a tal ponto que se torna difícil enquadrá-lo numa determinada corrente sociológica sem correr o risco de tomar a parte pelo todo.

Assim, por exemplo, sua tipologia social evolutiva estabelecida a partir da solidariedade social mecânica e orgânica poderia sugerir, tal como as primeiras páginas de La division du travail poderiam confirmar, que se trata meramente de um organicista. Mas o problema não se coloca de maneira tão simplista. Para compreendê-lo é preciso levar em conta o ambiente intelectual do século XIX, quando surgiu, principalmente na Inglaterra mergulhada no industrialismo, uma reação contra a concepção mecânica da sociedade, fruto desse mesmo industrialismo e na qual a divisão do trabalho se apresentava como uma grande conquista do espírito inventivo do homem.

Essa reação visava antes de tudo a uma valorização do homem, para superar a excessiva valorização dá máquina. Daí uma série de esforços no sentido de uma concepção orgânica da sociedade, que instruiu tanto concepções conservadoras – tal como a de Spencer – quanto socialistas – tal como a de John Ruskin.15 Na verdade, qualquer tentativa de simplesmente explicar o social pelo orgânico esbarraria com os preceitos metodológicos explicitados nas Règles.

Ao concluir Lés règles, Durkheim sintetiza seu método em três pontos básicos: a) independe de toda filosofia; b) é objetivo; c) é exclusivamente sociológico e os fatos sociais são antes de tudo coisas sociais. Buscando uma “emancipação da Sociologia” (DURKHEIM, 1895: p. 140) e procurando dar-lhe “uma personalidade independente” (id., ibid. p. 143) diz claramente nas páginas finais:

“Fizemos ver que um fato social não pode ser explicado senão por um outro fato social e, ao mesmo tempo, mostramos como esse tipo de explicação e possível ao assinalar no meio social interno o motor principal da evolução coletiva. A Sociologia não e, pois, o anexo de qualquer outra ciência; é, ela mesma, uma ciência distinta e autônoma, e o sentimento do que tem de especial a realidade social é de tal maneira necessário ao sociólogo, que apenas uma cultura especialmente sociológica pode prepará-lo para a compreensão dos fatos sociais” (id, ibid.).

Assim, o enquadramento que se pode fazer de Durkheim numa ou noutra corrente sociológica so e válido para aspectos parciais de sua obra. Florestan Fernandes ressalta que “a primeira formulação adequada dos fenômenos de função e da utilização da explicação funcionalista na Sociologia surge com A Divisão do Trabalho Social e As Regras do Método Sociológico de Durkheim” (FERNANDES, 1959: p. 204-05). Em sua obra metodológica Durkheim coloca a explicação, posteriormente chamada funcionalista (embora não revestida de preocupações teleológicas que, segundo ele, levariam a confusões com a filosofia), entre outras explicações que não se enquadram nessa corrente e mesmo a contradizem. Assim ocorre com a explicação genética, que tanto repudiam os funcionalistas modernos.16 Em suas obras posteriores, a abordagem funcionalista está ausente (Le suicide) ou aparece esporádica e secundariamente (Les formes élémentaires de la vie religieuse).

Outras caracterizações comumente feitas de Durkheim enquadram-no como sociologista e/ou positivista. Sua caracterização como sociologista, tal como faz Sorokin, por exemplo, coloca-o ao lado de Comte e serve sobretudo para marcar uma linha divisória entre Durkheim e Tarde, este caracterizado como psicologista (SOROKIN, 1938: cap. VIII, esp. p. 329 et segs.). A divergência básica consiste na precedência ou proeminência do indivíduo e da sociedade. Durkheim, na medida em que desenvolve sua teoria mediante a adoção de conceitos básicos de coerção, solidariedade, autoridade, representações coletivas etc., está na realidade fundamentalmente preocupado com a manutenção da ordem social. Nesse sentido, sua posição e antiatomista e se antepõe à abordagem de Spencer e Tarde sobretudo, essencialmente individualistas e em linha com a tradição liberal do século XIX com que, na medida em que o indivíduo busca sua realização pessoal (sobretudo sua riqueza), estará contribuindo para o bem-estar social. A posição durkheimiana a propósito das relações indivíduo-sociedade talvez seja uma das mais universais e coerentes em toda a sua obra.

Apesar de uma interpretação muito pessoal – que não vem ao caso discutir aqui – das formulações durkheimianas, Parsons ressalta que a metodologia de Durkheim é a do "positivismo sociologista" (PARSONS, 1968: v. I, cap. IX, p. 460 et seqs.; para as citações a seguir, ver p. 307, 61 e 343 respectivamente).17 Identificando-o como “herdeiro espiritual de Comte”, seu positivismo implica “o ponto de vista de que a ciência positiva constitui a única posição cognitiva possível” do homem face à realidade externa. Parsons ressalta que a originalidade de Durkheim está em diferenciar-se de seus antecessores, para quem a tradição positivista tinha sido predominantemente individualista. Ele elevou o “fator social” ao status de elemento básico e decisivo para explicar os fenômenos que tinham lugar no “reino social”, e que o social só se explica pelo social e que a sociedade é um fenômeno sui generis, independente das manifestações individuais de seus membros componentes. Parsons chama a atenção para o fato de que na obra metodológica mais antiga de Durkheim (Division du travail) se encontram duas linhas principais de pensamento:

“Uma, polêmica, e uma crítica do nível metodológico das concepções subjacentes do individualismo utilitarista. Outra, sua própria doutrina, é um desenvolvimento da tradição positivista geral, a que a maior parte do argumento deste estudo se refere”.

Com efeito, a clareza das posições conceituais de Durkheim obedece a uma constante metodológica: discute primeiramente as concepções correntes (vulgares ou não) a respeito de um fenômeno, para, em seguida, apresentar a sua própria, solidamente construída em termos coerentes com uma interpretação estritamente sociológica.

Após a análise e interpretação dos dados empíricos, a discussão teórica do problema é retomada, com vistas a chegar a conclusões que não só caracterizem em definitivo o fenômeno estudado, mas constituam também acréscimo valorativo das teorias anteriormente elaboradas. Nesse sentido, Le suicide e Les formes constituem modelos de trabalho científico no campo das ciências sociais e a demonstração de como fazer um estudo, seja de um fenômeno isolado, seja de um fenômeno de delimitação mais difícil. Este é o caso da vida religiosa, em que o ponto de partida da análise foi localizado no estudo das manifestações religiosas mais antigas e, por conseguinte, mais simples – o totemismo – para se atingir em seguida os aspectos mais complexos do fenômeno. Concretiza-se, assim, a já mencionada influência cartesiana sobre a metodologia durkheimiana.

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